Jards Macalé e Os Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos

Em plena Ditadura Militar, Jards Macalé idealizou e dirigiu um espetáculo bastante ousado. Ele reuniu, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, diversos nomes da música popular brasileira para comemorar os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

No dia 10 de dezembro de 1973, Chico Buarque, Gal Costa, Raul Seixas, Jorge Mautner, Edu Lobo, Luiz Melodia, Jards Macalé e outros, apresentaram para cerca de 4 mil pessoas o Banquete dos Mendigos.

Banquete que seria inofensivo se não intercalasse entre uma música e outra leituras da Declaração Universal dos Direitos Humanos e se não tivesse se tornado um álbum duplo, gravado ao vivo, pronto para ser lançado.

A ousadia de Jards Macalé teve seu preço: o disco foi imediatamente proibido pelo governo militar.

Sobre o episódio, nada saiu na imprensa.




O Banquete seis anos depois

Em 1979, Banquete dos Mendigos foi liberado, e o tropicalista Macalé - que na época havia mudado o nome para Makalé, se utilizando da metáfora já que o k não existia no nosso alfabeto - finalmente fez a divulgação pública do seu disco para uma plateia muito maior: 20 mil pessoas na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro.

No entanto, em seis anos as coisas haviam mudado, e Macalé recebeu mais acusações do que elogios. Durante a divulgação, nenhum dos artistas que participaram do disco apareceu.

Isso porque, pouco tempo antes, ele visitara Golbery do Couto e Silva, então chefe da Casa Civil e um dos mentores da Ditadura Militar no país.

Vestido com a camiseta do flamengo, Jards Macalé foi a Brasília entregar ao general os direitos humanos no banquete dos mendigos. Presenteou Golbery com o disco, recém liberado, e apresentou um plano de cultura que, como publicou o jornal O Globo, consistia em "acabar com o colonialismo cultural no Brasil: política cultural que proteja o artista nacional, questão de mercado de trabalho do artista, questão de memória nacional, abertura de novos espaços culturais, apoio à cooperativa dos músicos brasileiros, recuperação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e questão do direito autoral".

No encontro, Macalé ganhou um autógrafo de Golbery no livro "Geopolítica brasileira" escrito pelo general e dedicado "Ao incrível Macalé, com um grande e cordial abraço do admirador Golbery".

A polêmica estava feita e a partir do encontro, o banquete foi de explicações.

Ele havia mudado seus conceitos em relação a política tornando-se crítico tanto da esquerda quanto da direita. Makalé estava em outra.

Agora era um libertário que anunciava seus candidatos à Presidência e Vice Presidência da República: "Clementina de Jesus e Moreira da Silva", emendando logo em seguida que na verdade não tem partido político. Seu partido é o partido alto. (O Globo)

Pelo menos foi assim que justificou a visita que causou grande agito na imprensa. Logo a atenção para o disco e sua divulgação foi quase totalmente desviada e o foco ficou na "amizade" entre Golbery e o compositor.

A imprensa, de um modo geral, recebeu mal os novos posicionamentos de Macalé. Nenhuma crítica sobre o álbum, nenhum comentário sobre os músicos. O que realmente importava era polemizar o tal encontro e saber o que no autor de Gotham City havia mudado nos últimos seis anos.

No entanto, entre diversas acusações, a Veja mostrou-se exceção, e o permitiu falar. Reproduzo trechos da entrevista de Macalé à revista, que dedicou suas páginas amarelas ao músico, e espaço de sobra para ele se defender (e atacar).





Veja - O que o levou ao Palácio do Planalto para conhecer o ministro Golbery do Couto e Silva?

Macalé - Primeiro, porque quando li seu livro “Geopolítica do Brasil”, encontrei em determinado trecho uma semelhança estilística com Jorge Mautner e seus “Panfletos da Nova Era”. Segundo, porque a síntese do pensamento do livro me chamou a atenção - a ciência como instrumento de ação, a democracia como regime sócio-político e o cristianismo como padrão ético. E, para mim, o importante no cristianismo é justamente o humanismo que ele contém. Eu quis ver o homem.

Veja - Que questões você pretendia abordar nessa conversa?

Macalé - Fui conversar com ele da mesma forma que converso com Jorge Amado, com Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Caetano Veloso, Jorge Mautner. Não existe uma coincidência de idéias nem eu o “admiro” - entre aspas- muito. Não é a primeira vez que eu vou ao Planalto. Quando se discutia a situação de trabalho do músico e a invasão do nosso espaço cultural estive com Ney Braga. Dois anos atrás fui jantar na casa do ex-ministro Reis Velloso para tratar de assuntos culturais. E, além do mais, não tenho grilo de conversar com militares porque meu pai era militar.

Veja - Você apresentou um plano cultural ao ministro Golbery. Em que consiste esse plano?

Makalé - Basicamente, meu plano prevê uma guerra cultural anticolonialista. Nossos terreiros afro-brasileiros precisam invadir Nova York. E isso se dará por meio de nossos agentes culturais não-colonizados, como Clementina de Jesus. Sugere também a reconsideração e reestudo das penas dos presos comuns, porque tenho vários amigos pessoais presos e conheço situações de pessoas presas arbitrariamente. Mencionei também o revigoramento do pensamento humanista que determina um valor ético cristão e ainda sugeri o fim das divergências político-sócio-econômicas, que é um assunto que o ministro Golbery, em 1958 já abordou em seu livro. Aliás, pedi a ele que, depois de uma “Geopolítica do Brasil”, escrevesse uma “Geopolítica Cultural”. Antes de me despedir, entreguei ao general uma fita cassete com as seguintes músicas: “Evocação em Defesa da Pátria” de Heitor Villa-Lobos; “Dona Divergência”, de Lupicínio Rodrigues cantada por Linda Batista; “Não Chore Mais”, de Bob Marley na versão de Gilberto Gil e “Canção para Inglês Ver”, de Lamartine Babo. É isso aí.

Veja - Dizem que você pediu também a legalização da maconha. É verdade?

Macalé - Por que eu pediria a legalização da maconha, se todo mundo fuma?

Veja - Essa visita tem recebido críticas violentas. O “Pasquim” por exemplo, aconselha a rasgar com os dentes seu disco “Aprendendo a Nadar” e suspender “O Banquete dos Mendigos”.

Macalé - Essa mesquinha luta político-partidária que está aí solta pelo Brasil me irrita. As pessoas são burras, não sabem de nada, não entendem o Brasil. Os intelectualóides ficaram chocados porque entrei no Palácio do Planalto vestindo a camisa do Flamengo e saudei as pessoas com o cumprimento de Xangô. E ainda tive o desplante de dar ao general o livro “Tenda dos Milagres”, de Jorge Amado. Esses esquerdetes não suportam o povo. São racistas e preconceituosos. Troco toda essa genialidade dos intelectuais brasileiros pela intelectualidade dos Trapalhões. Para mim, essa luta partidária é replay menor. É papo de otário que não tem informação. A “inteligência” é burra e a esquerda é de “direita”.

Veja - Você pode explicar melhor o que chama de “inteligência burra” e de “esquerda de direita”?

Macalé - A esquerda é conturbada, tanto quanto a direita, não entende diálogo em alto nível. A paixão política cega os homens. Eu admiro as pessoas que fazem de sua profissão uma arte. E é no nível da arte que converso com elas. Não converso com o lado escuro delas, este, eu apenas observo. Agora, quando sopram os ares de uma abertura - que aliás venho observando desde 1974 -, sobram só os intelectuais entreguistas, de mentalidade europeizada e americanizada, e uma esquerda burra, totalitária e fascista. Desapareceu a censura oficial, surgiram os censores reais. Onde é que está a liberdade de expressão de que falaram tanto? E minha liberdade de expressão?

Veja - Você está nesse momento vivendo da renda do disco “O Banquete dos Mendigos”?

Macalé - “O Banquete dos Mendigos” não está rendendo dinheiro nem pra mim, nem pra ninguém. Os intérpretes não ganham, na medida em que abriram mão de 50% de seus direitos artísticos para a ONU. Eu só tenho 2% pelo trabalho de produção, que ainda divido com outras três pessoas. Além do mais, devo 150 000 cruzeiros - gastos no lançamento do disco. Tive que vender meu carro. Com exceção da Funarte, que pagou o som, ninguém se dispôs a dar um tostão. Esse disco é o único show ao vivo que se fez no Brasil com o som tecnicamente perfeito. É um documento político fundamental e, como documento musical, também é da maior importância.

Veja - Os artistas que cantam no disco também participaram da festa?

Macalé - Não. A ONU mandou convite para todos, mas nenhum deles apareceu. Nenhum, graças a Deus. Foi o melhor que podia acontecer. Colocamos uma mesinha e, pelo microfone, avisamos que, quem quisesse cantar, tocar e poetizar, poderia se inscrever. Subiram no palco pessoas absolutamente fantásticas, com músicas, poemas e instrumentos maravilhosos. O povo dispensou com a melhor tranqüilidade os “ídolos”. Isso é um recado claro: não fizeram nenhuma falta.

Veja - Parece que os antigos parceiros também não fazem falta.

Macalé - São todos decadentes. O Waly Salomão é decadente. José Carlos Capinam é decadente. Não estou no meio dessa decadência. Renasci no dia do lançamento, comendo balas e pipocas com as crianças. Alimentei meu corpo social, cresci, não tenho nada com a decadência do intelectualóide brasileiro. Fica todo mundo deitado no divã do psicanalista, quando Freud entrou em crise. Não levaram Freud a sério, não levaram Reich a sério, não levaram Marx a sério. Não se levaram a sério. Eu me levei.

Veja - Há uma grande distância do Macalé de “Gotham City”, vaiado no FIC em 1969, e o Makalé que vai hoje a Brasília.

Macalé - Claro. Primeiro, o mundo mudou. Depois, o Brasil mudou. A África mudou. A América Latina mudou. O que existe hoje é o ocidentoriente. O homem de Gotham City entrou exatamente há dez anos atrás de camisolão no Macaranãzinho e, junto com José Carlos Capinam: “Cuidado, há um morcego na porta principal. Cuidado, há um abismo na porta principal. Não se fala mais de amor”. Pediram minha cabeça naquela época. Agora, quem quiser que olhe para trás e veja seus últimos dez anos de vida. Quem não tomou cuidado, dançou. O Makalé de hoje é um homem livre das amarras da política. Antigamente, eu era teleguiado da direita e da esquerda, sem ter consciência para isso. Atualmente, o homem Makalé fez sua independência.

Veja - O novo Makalé ainda é capaz de comer rosas no palco?

Macalé - Não, jamais. Isso morreu. E antes isso que eu.

As matérias:

Folha de São Paulo, em 20/9/79 - Isa Cambará
O Globo, em 27/9/79
Veja - 17/10/79 - Regina Echeverria e Elizabeth Carvalho
Folha de São Paulo, em 25/11/79

A Cabeça de Walter Franco

A aparição de Walter Franco no VII Festival Internacional da Canção, em 1972, foi polêmica e talvez mais do que ele mesmo pretendia ser.


Primeiro porque ele apresentou Cabeça, música de letra estranha, com recursos eletrônicos então inéditos na música brasileira. Sofisticada, experimental e diferente de tudo que até o momento havia sido apresentado. Causou surpresa, foi aplaudida pelo jurados.


Segundo porque ainda que a aceitação do júri e críticos tenha sido positiva, a plateia não gostou: cerca de 4 mil pessoas vaiaram Walter Franco durante sua apresentação. No entanto, diante disso, ele permaneceu impassível, imóvel e perturbadoramente tranquilo. Surgia ali um "cara zen" (Faceta que a própria imprensa ajudou a criar e de forma correta: a reação de Walter Franco se repetiria em outras situações, e tal postura foi bastante explorada de modo a se tornar uma marca registrada e que se confirmaria nos discos gravados depois, quando expressa melhor sua forte relação com a filosofia oriental).


Em terceiro lugar, a polêmica música foi classificada (o júri era formado por Roberto Freire, Décio Pignatari, Nara Leão, Sérgio Cabral, Mário Luís Barbato, Rogério Duprat, Alberto de Carvalho, João Carlos Martins, Guilherme Araújo, Big Boy, Walter Silva) e seria premiada. No entanto, Nara Leão, então presidente dos jurados, havia dado uma entrevista ao Jornal do Brasil em que falava mal dos militares. Em seguida, a direção do Festival recebeu a notícia de que Nara não poderia mais participar. O júri foi demitido e substituido por um júri internacional. A música de Walter Franco foi desclassificada.


Por fim, Walter Franco e sua apresentação foram polêmicos porque, diferente do que muitos possam pensar sobre o tratamento dos grandes jornais e revistas em relação aos artistas experimentais e "malditos", Walter Franco teve dedicado espaço na imprensa, com matérias regadas a elogios e defesas - claro que talvez um detalhe faça diferença, ainda que nada posso ser realmente afirmado: Walter Silva, um dos principais criticos da Folha de São Paulo, foi também produtor do disco Ou não, lançado no inico de 73. De qualquer modo, críticos e jornalistas da época souberam reconhecer o talento anunciado e no geral, a imprensa paulista tratou Walter Franco com bastante interesse. Artista ousado, polêmico, mas dotado de grande talento. Chegou a ser anunciado como o principal nome da música brasileira, cujo trunfo foi justamente sua capacidade de inovação.


No entanto, a desclassificação de Cabeça é um aspecto que ficou por dizer. Pelo menos entre meu pequeno acervo, que conta com matérias da Folha de São Paulo e Veja da década de 1970 inteira e algumas do jornal do Brasil, Estado de S. Paulo, entre outros, nada foi dito. Se ele tentou dizer algo, também não se sabe. Nesse sentido é claro que a imprensa deixou a desejar, ainda que isso aparentemente não tenha abalado Walter Franco. Durante o Festival, ele já se preparava para gravar seu primeiro disco.


A destituição do júri nacional e a desclassificação da música de Walter Franco gerou diversas reações em que se acreditava na ideia de que havia sido sabotagem para tirar a premiação.


As músicas vencedoras, no final do Festival, foram Fio Maravilha de Jorge Ben, defendida por Maria Alcina e Diálogo, samba de Baden Powel e Paulo César Pinheiro, interpretado por Cláudia Regina e Baden. Canções que ganharam no lugar de Cabeça, mas que nem chegaram a se classificar na fase internacional.


As matérias:
Folha de S. Paulo, em 2/10/72
Veja, em 27/9/72 - Otávio Tavares de Araújo
Folha de S. Paulo, em 16/9/72 - Walter Silva

Ouçam Cabeça